13/07/2008
O Caçador de Pipas
Ao longo dos anos, vi milhares de garotos correndo atrás de pipas.
Mas Hassan foi de longe o melhor que jamais vi. Era impressionante como ele percebia onde a pipa poderia ir parar, antes mesmo que ela começasse a cair, como se tivesse uma espécie de bússola interior.
Lembro de um dia nublado de inverno, quando Hassan e eu estávamos tentando apanhar uma pipa. Fui correndo atrás dele pelo bairro todo, pulando valetas, me embrenhando por ruelas estreitas.
Hassan era um ano mais moço, mas corria bem mais depressa, e eu já estava ficando para trás.
-Hassan! Espere!- Gritei quase sem fôlego.
Ele se virou e fez um gesto com a mão.
-Por aqui.-Disse antes de desaparecer em uma outra esquina.
Olhei para cima e vi que estávamos correndo em um direção, enquanto a pipa ia sendo levada para o lado oposto.
-Vamos perder essa pipa! Estamos indo para o lado errado!-Exclamei.
-Confie em mim!-Gritou ele lá de longe.
Cheguei na esquina e vi Hassan, que continuava correndo, de cabeça baixa, sem nem mesmo olhar para o céu, com as costas da camisa encharcadas de suor. Tropecei em uma pedra e cai.-Eu não era só mais lento que Hassan, era mais desajeitado também; sempre tive inveja de sua condição atlética natural. Quando me levantei, avistei Hassan que desaparecia dobrando uma outra esquina. Saí mancando atrás dele, sentindo fisgadas de dor nos joelhos esfolados.
Fomos dar em uma estradinha de terra toda esburacada, perto da escola secundária Istiqlal.
De um lado, havia um campo que, no verão, era uma plantação de alfaces, e, do outro, um renque de cerejeiras. Vi Hassan sentado no chão, ao pé de uma daquelas árvores, comendo um punhado de amoras secas.
- O que é que estamos fazendo aqui?- Indaguei ofegante, com o estômago se revirando de enjôo.
- Sente comigo, Amir agha.- Disse ele sorrindo.
Na verdade, me deixei cair ao seu lado e me estiquei em um pedacinho de chão coberto de neve, quase sem fôlego.
-Estamos perdendo tempo. Não viu que a pipa está indo para o outro lado?
Hassan Trincou uma amora.
-Está vindo para cá.-Respondeu.
Eu mal podia respirar, e ele nem parecia cansado.
-Como pode saber?- Perguntei.
-Eu sei.
-Como?
Ele se virou para mim. Algumas gotinhas de suor escorriam de sua cabeça raspada.
-Já menti para você, Amir agha?
De repente resolvi implicar com ele.
-Sei lá.- Respondi. - Já?
-Mil vezes comer cocô! - Exclamou ele com ar indignado.
-De verdade? Você faria isso?
Ele me lançou um ar desconcertado.
-Faria o quê?
-Comer cocô, se eu mandasse. - Respondi.
Sabia que estava sendo crue, como daquelas vezes que debochava dele quando não conhecia uma palavra qualquer. Mas havia algo de fascinante, embora de um jeito doentio, em implicar com Hassan. Era um pouco como brincar de torturar insetos. Só que, agora, ele era a formiga e eu é que estava segurando a lupa.
Ele ficou me encarando por um bom tempo. Estávamos sentados ali, dois meninos debaixo de uma cerejeira, e, de repente, nos olhávamos, olhávamos de verdade.
Foi então que aconteceu de novo: O rosto de Hassan mudou.
Talvez não tenha mudado, não para valer, mas, de repente, tive a sensação de estar olhando para dois rostos: um deles, o que eu conhecia, aquele que era a minha lembrança mais remota; o outro, o segundo rosto, era o que estava escondido logo abaixo da superfície.
Já tinha visto isso acontecer antes e aquilo sempre me deixava um pouco atordoado.
Esse outro rosto só aparecia por uma fração de segundo, mas isso era o bastante para me deixar com a perturbadora sensação de que talvez já o tivesse visto em algum lugar.
Então, Hassan piscava e voltava a ser ele mesmo. Simplesmente Hassan.
Se você mandasse, faria sim.- Disse ele afinal, olhando bem para o meu rosto. Baixei os olhos.
Foi aí que descobri como é difícil olhar diretamente nos olhos das pessoas como Hassan, essas pessoas que dizem sinceramente o que pensam.
-Mas fico imaginando... -Acrescentou ele.
-Será que algum dia você me mandaria fazer uma coisa dessas, Amir agha?
E, com isso, Hassan me propôs um pequeno teste. Se eu ia provocá-lo, desafiando a sua lealdade, ele ia fazer o mesmo, pondo à prova a minha integridade.
Adoraria não ter começado aquela conversa. Dei um sorriso forçado.
-Não seja idiota, Hassan. Você sabe muito bem que eu não faria isso!
Post feito pelo Girlrock às 17:15
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